10 agosto 2009

Carta aos diáconos

Caríssimos Diáconos permanentes,

Sempre mais a Igreja descobre a inestimável riqueza do diaconato permanente. Quando os Bispos vem à Congregação para o Clero, por ocasião das visitas “ad limina”, o tema do diaconato, entre outros, costuma ser comentado e os Bispos geralmente se mostram muito contentes e cheios de esperança em relação a vós, Diáconos permanentes. Isso nos enche de alegria a todos nós. A Igreja vos agradece e reconhece vossa dedicação e vosso qualificado trabalho ministerial. Ao mesmo tempo, quer encorajar-vos na estrada da santificação pessoal, da vida de oração e da espiritualidade diaconal. A vós pode igualmente aplicar-se o que o Papa disse aos Sacerdotes, para o Ano Sacerdotal, a saber: é necessário “favorecer aquela tensão dos Sacerdotes rumo à perfeição espiritual, da qual sobretudo depende a eficácia do seu ministério” (disc. de 16.3.09).

Hoje, na festa de são Lourenço, diácono e mártir, convido-vos para duas reflexões. Uma sobre vosso ministério da Palavra e outra sobre vosso ministério da Caridade.

Recordamos ainda com gratidão o Sínodo sobre a Palavra de Deus, celebrado em outubro do ano passado. Nós, ministros ordenados, recebemos do Senhor, mediante a Igreja, o encargo de pregar a Palavra de Deus até os confins da terra, anunciando a pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, sua palavra e seu Reino, a toda criatura. Essa Palavra, como afirma a Mensagem final do Sínodo, tem uma Sua voz, a Revelação, um Seu rosto, Jesus Cristo, e um Seu caminho, a Missão. Conhecer a Revelação, aderir incondicionalmente a Jesus Cristo, como discípulo fascinado e enamorado, partir de Jesus Cristo e com Ele para a Missão, eis o que se espera, decididamente e num modo totalmente sem reservas, de um Diácono permanente. Do bom discípulo nasce o bom missionário.

O ministério da Palavra, que, especialmente para os Diáconos, possui em santo Estêvão, diácono e mártir, um grande modelo, exige dos ministros ordenados um esforço constante para estudar a Palavra e fazê-la sua, ao mesmo tempo em que a proclamam aos outros. A meditação, em forma de “lectio divina”, ou seja, de leitura orante, é um método hoje sempre mais utilizado e aconselhado para comprender, fazer sua e viver a Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, a formação intelectual, teológica e pastoral apresenta-se como desafio para toda a vida. Um qualificado e atualizado ministério da Palavra depende muito dessa formação aprofundada.

Estamos esperando também, para um próximo futuro, o documento do Santo Padre sobre as conclusões do citado Sínodo. Deverá ser acolhido com abertura de coração e com um sucessivo empenho de aprofundamento.

A segunda reflexão diz respeito ao ministério da Caridade, que pode ver em são Lourenço, diácono e mártir, um grande modelo. O diaconato tem suas raízes na organização eclesial da caridade, na Igreja primitiva. Em Roma, no séc. III, período de grandes perseguições aos cristãos, aparece a figura extraordinária de são Lourenço, arquidiácono do Papa são Sixto II, que lhe confiou a administração dos bens da comunidade. De são Lourenço afirmou nosso amado Papa Bento XVI: “A solicitude pelos pobres, o generoso serviço prestado à Igreja de Roma no setor da assistência e da caridade, a fidelidade ao Papa, levada ao ponto de querer segui-lo na prova suprema do martírio, e o heróico testemunho do sangue, prestado poucos dias depois, são fatos universalmente conhecidos” (homilia na basílica de são Lourenço, 30.11.08). De são Lourenço é também conhecida a afirmação: “A riqueza da Igreja são os pobres”. A estes ele assistia com grande generosidade. Eis um exemplo ainda atual para os Diáconos permanentes. Devemos amar os pobres de maneira preferencial, como o fez Jesus Cristo. Ser solidários com eles. Procurar construir uma sociedade justa, fraterna e pacífica. A recente carta encíclica de Bento XVI, “Caritas in Veritate” (A caridade na verdade), seja nosso guia atualizado. Nesta encíclica o Santo Padre afirma como princípio fundamental: “A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja” (n. 2). Os Diáconos, com efeito, identificam-se especialmente com a caridade. Os pobres constituem um de seus ambientes cotidianos e objeto de sua incansável solicitude. Não se comprenderia um Diácono que não se envolvesse pessoalmente na caridade e na solidariedade para com os pobres, que hoje de novo se multiplicam.

Caríssimos Diáconos permanentes, Deus vos abençoe com todo o seu amor e vos faça felizes na vocação e na missão. Às esposas e aos filhos daqueles que, dentre vós, são casados, saúdo com respeito e admiração. A eles a Igreja agradece o apoio e a multiforme colaboração que prestam aos seus esposos e, respectivamente, pais no ministério diaconal. Enfim, o Ano Sacerdotal nos convida a manifestar nosso apreço aos caríssimos Sacerdotes e a rezar com eles e por eles.

Vaticano, 10 de agosto de 2009 (festa de são Lourenço, diácono e mártir).

Cardeal Dom Cláudio Hummes
Arcebispo Emérito de São Paulo
Prefeito da Congregação para o Clero

03 agosto 2009

Carta pelo Dia do Padre - 04 de agosto

Jesus disse: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12,47).

Caros Presbíteros,

A atual cultura ocidental dominante, sempre mais difundida em todo o mundo, através da mídia global e da mobilidade humana, também nos países de outras culturas, apresenta novos desafios, não pouco empenhativos, para a evangelização. Trata-se de uma cultura marcada profundamente por um relativismo que recusa toda afirmação de uma verdade absoluta e transcendente e, em consequência, arruina também os fundamentos da moral e se fecha à religião. Dessa forma, perde-se a paixão pela verdade, relegada a uma “paixão inútil”. Jesus Cristo, no entanto, apresenta-se como a Verdade, o Logos universal, a Razão que ilumina e explica tudo o que existe. O relativismo, ademais, vem acompanhado de um subjetivismo individualista, que põe no centro de tudo o próprio ego. Por fim, chega-se ao niilismo, segundo o qual não há nada nem ninguém pelo qual vale a pena investir a própria inteira vida e, portanto, a vida humana carece de um verdadeiro sentido. Todavia, é preciso reconhecer que a atual cultura dominante, pós-moderna, traz consigo um grande e verdadeiro progresso científico e tecnológico, que fascina o ser humano, principalmente os jovens. O uso deste progresso, infelizmente, não tem sempre como escopo principal o bem do homem e de todos os homens. Falta-lhe um humanismo integral, capaz de dar-lhe seu verdadeiro sentido e finalidade. Poderíamos referir-nos ainda a outros aspectos dessa cultura: consumismo, libertinagem, cultura do espetáculo e do corpo. Não se pode, porém, não frisar que tudo isso produz um laicismo, que não quer a religião, faz de tudo para enfraquecê-la ou, ao menos, relegá-la à vida particular das pessoas.

Essa cultura produz uma descristianização, por demais visível, na maioria dos países cristãos, especialmente no Ocidente. O número das vocações sacerdotais caiu. Diminuiu também o número dos presbíteros, seja pela falta de vocações seja pelo influxo do ambiente cultural em que vivem. Tais circunstâncias poderiam conduzir-nos à tentação de um pessimismo desencorajante, que condena o mundo atual, e induzir-nos à retirada para a defensiva, nas trincheiras da resistência.

Jesus Cristo, ao invés, afirma: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12,47). Não podemos nem desencorajar-nos nem ter medo da sociedade atual nem simplesmente condená-la. É preciso salvá-la! Cada cultura humana, também a atual, pode ser evangelizada. Em cada cultura há “sementes do Verbo”, como aberturas para o Evangelho. Certamente, também na nossa atual cultura. Sem dúvida, também os assim chamados “pós-cristãos” poderiam ser tocados e reabrir-se, caso fossem levados a um verdadeiro encontro pessoal e comunitário com a pessoa de Jesus Cristo vivo. Em tal encontro, cada pessoa humana de boa vontade pode, por Ele, ser alcançada. Ele ama a todos e bate à porta de todos, porque quer salvar a todos, sem exceção. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, para todos. É o único mediador entre Deus e os homens.

Caríssimos Presbíteros, nós, pastores, nos tempos de hoje, somos chamados com urgência à missão, seja “ad gentes”, seja nas regiões dos países cristãos, onde tantos batizados afastaram-se da partecipação em nossas comunidades ou, até mesmo, perderam a fé. Não podemos ter medo nem permanecer quietos em casa. O Senhor disse a seus discípulos: “Por que tendes medo, homens fracos na fé?” (Mt 8, 26). “Não se acende uma lâmpada e se coloca debaixo do alqueire, mas no candieiro, para que ilumine a todos os que estão na casa” (5,15). “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). “Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).

Não lançaremos a semente da Palavra de Deus apenas da janela de nossa casa paroquial, mas sairemos ao campo aberto da nossa sociedade, a começar pelos pobres, para chegar também a todas as camadas e instituições sociais. Iremos visitar as famílias, todas as pessoas, principalmente os batizados que se afastaram. Nosso povo quer sentir a proximidade da sua Igreja. Faremo-lo, indo à nossa sociedade com alegria e entusiasmo, certos da presença do Senhor conosco na missão e certos de que Ele baterá à porta dos corações aos quais O anunciarmos.

Cardeal Cláudio Hummes
Arcebispo Emérito de São Paulo
Prefeito da Congregação para o Clero

30 julho 2009

,O Ano Sacerdotal - “Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote”

Inúmeras são as iniciativas que podemos tomar ao longo do “Ano Sacerdotal”, para o bem dos sacerdotes e a fecundidade do seu ministério pastoral.
Em primeiro lugar, queremos empenhar-nos ardorosamente, a fim de que seja um ano devidamente celebrado em nossa Diocese, envolvendo todas as Paróquias, Comunidades e todo o Povo de Deus, sobretudo, redobrando nosso amor e nossa oração pela santificação de nossos queridos Padres.
Os Presbíteros devem receber um carinho especial do Povo de Deus, pois a vida cristã dos fiéis depende praticamente do ministério zeloso e generoso de seus Padres.
O Padre que está à frente de uma Paróquia, seja como Pároco ou Vigário paroquial, merece uma atenção especial de seus paroquianos e paroquianas. Diariamente os/as paroquianos/as devem agradecer a Deus pelo “seu” Padre, pela vida e pela vocação do Sacerdote que exerce a caridade pastoral na paróquia que lhe foi confiada.
O Padre precisa muito das orações, do apoio e da solidariedade de seus fiéis para viver em santidade, para ser fiel a Jesus Cristo, Bom Pastor. O povo nutre uma ternura filial para com o Padre que transparece um coração bondoso, misericordioso, compassivo e acolhedor. São essas as virtudes que mais cativam e arrastam os corações dos fiéis cristãos.
Mais do que julgar e falar mal do Padre e do seu jeito de ser e de fazer, as pessoas são convidadas a rezar pela santificação dos sacerdotes. Também o Padre precisa muito do perdão, da compreensão, do apoio e do incentivo de seus/suas paroquianos/as.
Fico muito feliz, e conforta sobremaneira meu coração de Bispo, quando percebo o amor gratuito e fraterno que o Povo de Deus tem para com o Padre. É bonito ver e faz o coração da gente vibrar mais intensamente, quando constato uma convivência fraterna e amiga do Padre com os leigos e leigas, corresponsáveis na obra da evangelização. Nada mais eficaz para a construção e crescimento do Reino de Deus do que o testemunho de comunhão e de unidade.
Meu coração chega a derramar lágrimas de gratidão, quando percebo ou ouço dizer que pessoas de diversas paróquias manifestam uma atenção carinhosa e amiga para com os Padres idosos ou doentes. Tal sensibilidade e solidariedade cristã tocam o divino, pois o coração do Pai aceita gestos assim como feitos a Ele.
Graças a Deus, a maioria de nosso Povo cultiva grande respeito e gratidão aos Padres que deram tudo de si, gastando sua vida a serviço do Reino e do bem-estar espiritual das almas. Sou testemunha da abnegação e da ternura com que pessoas de coração grande assumem essa tarefa tão humana e tão divina. Não ficarão sem a divina recompensa…
Fixando nosso olhar e o nosso coração no Coração transpassado de Cristo, Dele aprenderemos a arte de querer bem e de amar nossos Sacerdotes.
São João Maria Vianney nos ensine a rezar pelos Sacerdotes e a amá-los de todo o coração.
Maria Santíssima, Mãe de Jesus Sacerdote, abençoe abundantemente todas as pessoas que rezam pelos Sacerdotes.

Dom Nelson Westrupp, scj
Bispo Diocesano de santo André

08 julho 2009

Nota da CNBB contra a corrupção

“Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).


Nós, membros do Conselho Permanente da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunidos em Brasília, nos dias 16 a 18 de junho de 2009, manifestamos indignação diante das repetidas acusações de corrupção nas instâncias dos Poderes constituídos. A corrupção e a decorrente impunidade constituem grandes ameaças ao sistema democrático.

A corrupção aumenta o fosso das desigualdades sociais, como também a miséria, a fome e a pobreza. Além de ferir gravemente o princípio do destino universal dos bens, raramente se tem notícias sobre a restituição dos recursos e bens públicos usurpados. A corrupção trai a justiça e a ética social, compromete o funcionamento do Estado, decepciona e afasta o povo da participação política, levando-a ao desprezo, perplexidade, cansaço, revolta, e ao descrédito generalizado, não somente pelos políticos, mas também pelas Instituições Públicas.
A imprensa nacional e os órgãos públicos competentes têm divulgado a prática de comprovada corrupção nos meios políticos como um círculo vicioso, um hábito enraizado na inversão dos meios e do fim da “coisa pública”. Ao mesmo tempo em que a mídia funciona como caixa de ressonância, denunciando os males presentes na vida política, muitas vezes pode semear na opinião pública a idéia da inutilidade do Congresso, desvalorizando a democracia.

Diversas instâncias da sociedade civil já é se manifestam em favor da reforma política para, entre outros objetivos, sanar os males da corrupção sedimentados na vida pública. A Igreja quer contribuir para o bem comum, lembrando as exigências éticas do Evangelho. A política é um serviço ao bem comum, na construção da sociedade justa, fraterna e solidária. Os políticos sejam pessoas dotadas de virtudes sociais, como competência, retidão, transparência e espírito de serviço, sendo os primeiros responsáveis pela ordem justa na sociedade. A superação da corrupção exige pessoas e partidos com perfil íntegro para o exercício do mandado publico. Convocamos a todos para que, através do Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Vida Pregressa dos Candidatos (Projeto Ficha Limpa), da Reforma Política e outras mobilizações, possamos garantir eleições regidas pela ética em 2010, fortalecendo a participação e garantindo a credibilidade dos processos democráticos. Nesse sentido, a Igreja oferece, por meio das escolas de Fé e Política, uma concreta e valiosa contribuição.

Que Nossa Senhora Aparecida, serva de Deus e da humanidade, ajude o povo brasileiro a combater a corrupção, cirando condições para uma sociedade justa e plenamente democrática.

Esperamos que esta nota da CNBB nos encoraje na evangelização em prol da ética na política. Nossa missão é defender a vida, a justiça, a dignidade da pessoa e os direitos humanos. Para isso vamos formar nossos fiéis na dimensão social do evangelho e prepará-los para assumirem funções políticas como lugar de evangelização.

23 junho 2009

Oração para o Ano Sacerdotal

Senhor Jesus,

Vós quisestes dar a Igreja, em São João Maria Vianney, uma imagem vivente e uma personificação da caridade pastoral.

Ajudai-nos a viver bem este Ano Sacerdotal, em sua companhia e com o seu exemplo.

Fazei que, a exemplo do Santo Cura D’Ars, possamos aprender como estar felizes e com dignidade diante do Santíssimo Sacramento, como seja simples e quotidiana a vossa Palavra que nos ensina, como seja terno o amor com o qual acolheu os pecadores arrependidos, como seja consolador o abandono confiante à vossa Santíssima Mãe Imaculada e como seja necessária a luta vigilante e fiel contra o Maligno.

Fazei, ó Senhor Jesus que, com o exemplo do Cura D’Ars, os nossos jovens possam sempre mais aprender o quanto seja necessário, humilde e glorioso, o ministério sacerdotal que quereis confiar àqueles que se abrem ao vosso chamado.

Fazei que também em nossas comunidades, tal como aconteceu em Ars, se realizem as mesmas maravilhas de graça que fazeis acontecer quando um sacerdote sabe “colocar amor na sua paróquia”.Fazei que as nossas famílias cristãs saibam descobrir na Igreja a própria casa, na qual os vossos ministros possam ser sempre encontrados, e saibam fazê-la bela como uma igreja.

Fazei que a caridade dos nossos pastores anime e acenda a caridade de todos os fiéis, de tal modo que todos os carismas, doados pelo Espírito Santo, possam ser acolhidos e valorizados.

Mas, sobretudo, ó Senhor Jesus, concedei-nos o ardor e a verdade do coração, para que possamos dirigir-nos ao vosso Pai Celeste, fazendo nossas as mesmas palavras de São João Maria Vianney:
Eu Vos amo, meu Deus, e o meu único desejo é amar-Vos até o último suspiro da minha vida.
Eu Vos amo, Deus infinitamente amável, e prefiro morrer amando-Vos a viver um só instante sem Vos amar.
Eu Vos amo, Senhor, e a única graça que Vos peço é a de amar-Vos eternamente.
Eu Vos amo, meu Deus, e desejo o céu para ter a felicidade de Vos amar perfeitamente.
Eu Vos amo, meu Deus infinitamente bom, e temo o inferno porque lá não haverá nunca a consolação de Vos amar.
Meu Deus, se a minha língua não Vos pode dizer a todo o momento que Vos amo, quero que o meu coração Vo-lo repita cada vez que respiro.
Meu Deus, concedei-me a graça de sofrer amando-Vos e de Vos amar sofrendo.
Eu Vos amo, meu divino Salvador, porque fostes crucificado por mim e porque me tendes aqui em baixo crucificado por Vós.
Meu Deus, concedei-me a graça de morrer amando-Vos e de saber que Vos amo.
Meu Deus, à medida que me aproximo do meu fim, concedei-me a graça de aumentar e aperfeiçoar o meu amor.
Amém.
S. João Maria Vianney

19 junho 2009

Especial Ano Sacerdotal





Significado do logotipo do Ano Sacerdotal

Trata-se da iconografia do Sagrado Coração de Jesus, em referência à Jornada Anual pela Santificação dos Sacerdotes, que sempre coincide, desde a sua instituição, com a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. Portanto, chama a atenção direta ao tema da santidade específica à qual o ministro sagrado é chamado.
O Coração, que irradia raios de luz, refere-se à frase do Santo Cura d’Ars, que define o sacerdócio como sendo o “amor do Coração de Jesus”.
A estola, que se vê na imagem do Senhor, significa o Seu ser “Sumo e Eterno Sacerdote”, e evoca o fato de que todo presbítero é constituído como um prolongamento do Único Sacerdote, na história e para as gerações futuras.
Os braços abertos simbolizam a postura típica e própria do sacerdote em atitude de oração e de meditação. As chagas nas mãos e no lado de Cristo, tal como se encontram na imagem do logotipo, recordam o único sacrifício redentor e evocam a satisfação vicária e a doação total de si mesmo, próprias do sacerdócio. A postura de acolhida parece dizer: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”. Trata-se de um convite consolador a todos os sacerdotes, que se fadigam no exercício quotidiano da caridade pastoral – às vezes, em terrenos mais áridos e difíceis – e, ao mesmo tempo, representa um exemplo, para que cada sacerdote tenha a mesma atitude diante dos que lhe estão próximos e também dos mais distantes.


Carta do Papa aos sacerdotes com ocasião do Ano Sacerdotal


Uma nova primavera para a Igreja

"Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote"


Amados irmãos no sacerdócio,


Na próxima solenidade do Sacratíssimo Coração de Jesus, sexta-feira 19 de Junho de 2009 – dia dedicado tradicionalmente à oração pela santificação do clero – tenho em mente proclamar oficialmente um «Ano Sacerdotal» por ocasião do 150.º aniversário do «dies natalis» de João Maria Vianney, o Santo Patrono de todos os párocos do mundo.

Tal ano, que pretende contribuir para fomentar o empenho de renovação interior de todos os sacerdotes para um seu testemunho evangélico mais vigoroso e incisivo, terminará na mesma solenidade de 2010. «O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus»: costumava dizer o Santo Cura d’Ars.


Esta tocante afirmação permite-nos, antes de mais nada, evocar com ternura e gratidão o dom imenso que são os sacerdotes não só para a Igreja mas também para a própria humanidade. Penso em todos os presbíteros que propõem, humilde e quotidianamente, aos fiéis cristãos e ao mundo inteiro as palavras e os gestos de Cristo, procurando aderir a Ele com os pensamentos, a vontade, os sentimentos e o estilo de toda a sua existência. Como não sublinhar as suas fadigas apostólicas, o seu serviço incansável e escondido, a sua caridade tendencialmente universal? E que dizer da fidelidade corajosa de tantos sacerdotes que, não obstante dificuldades e incompreensões, continuam fiéis à sua vocação: a de «amigos de Cristo», por Ele de modo particular chamados, escolhidos e enviados?

Eu mesmo guardo ainda no coração a recordação do primeiro pároco junto de quem exerci o meu ministério de jovem sacerdote: deixou-me o exemplo de uma dedicação sem reservas ao próprio serviço sacerdotal, a ponto de encontrar a morte durante o próprio acto de levar o viático a um doente grave. Depois repasso na memória os inumeráveis irmãos que encontrei e encontro, inclusive durante as minhas viagens pastorais às diversas nações, generosamente empenhados no exercício diário do seu ministério sacerdotal. Mas a expressão utilizada pelo Santo Cura d’Ars evoca também o Coração traspassado de Cristo com a coroa de espinhos que O envolve. E isto leva o pensamento a deter-se nas inumeráveis situações de sofrimento em que se encontram imersos muitos sacerdotes, ou porque participantes da experiência humana da dor na multiplicidade das suas manifestações, ou porque incompreendidos pelos próprios destinatários do seu ministério: como não recordar tantos sacerdotes ofendidos na sua dignidade, impedidos na sua missão e, às vezes, mesmo perseguidos até ao supremo testemunho do sangue?
Infelizmente existem também situações, nunca suficientemente deploradas, em que é a própria Igreja a sofrer pela infidelidade de alguns dos seus ministros. Daí advém então para o mundo motivo de escândalo e de repulsa.

O máximo que a Igreja pode recavar de tais casos não é tanto a acintosa relevação das fraquezas dos seus ministros, como sobretudo uma renovada e consoladora consciência da grandeza do dom de Deus, concretizado em figuras esplêndidas de generosos pastores, de religiosos inflamados de amor por Deus e pelas almas, de directores espirituais esclarecidos e pacientes. A este respeito, os ensinamentos e exemplos de S. João Maria Vianney podem oferecer a todos um significativo ponto de referência. O Cura d’Ars era humilíssimo, mas consciente de ser, enquanto padre, um dom imenso para o seu povo: «Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o maior tesouro que o bom Deus pode conceder a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina». Falava do sacerdócio como se não conseguisse alcançar plenamente a grandeza do dom e da tarefaconfiados a uma criatura humana: «Oh como é grande o padre! (…) Se lhe fosse dado compreender-se a si mesmo, morreria. (…) Deus obedece-lhe: ele pronuncia duas palavras e, à sua voz, Nosso Senhor desce do céu e encerra-se numa pequena hóstia».

E, ao explicar aos seus fiéis a importância dos sacramentos, dizia: «Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem a há-de preparar para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. (…) Depois de Deus, o sacerdote é tudo! (…) Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no céu».

Estas afirmações, nascidas do coração sacerdotal daquele santo pároco, podem parecer excessivas. Nelas, porém, revela-se a sublime consideração em que ele tinha o sacramento do sacerdócio. Parecia subjugado por uma sensação de responsabilidade sem fim: «Se compreendêssemos bem o que um padre é sobre a terra, morreríamos: não de susto, mas de amor. (…) Sem o padre, a morte e a paixão de Nosso Senhor não teria servido para nada. É o padre que continua a obra da Redenção sobre a terra (…) Que aproveitaria termos uma casa cheia de ouro, senão houvesse ninguém para nos abrir a porta? O padre possui a chave dos tesouros celestes: é ele que abre a porta; é o ecónomo do bom Deus; o administrador dos seus bens (…) Deixai uma paróquia durante vinte anos sem padre, e lá adorar-se-ão as bestas. (…) O padre não é padre para si mesmo, é-o para vós».

Tinha chegado a Ars, uma pequena aldeia com 230 habitantes, precavido pelo Bispo de que iria encontrar uma situação religiosamente precária: «Naquela paróquia, não há muito amor de Deus; infundi-lo-eis vós». Por conseguinte, achava-se plenamente consciente de que devia ir para lá a fim de encarnar a presença de Cristo, testemunhando a sua ternura salvífica: «[Meu Deus], concedei-me a conversão da minha paróquia; aceito sofrer tudo aquilo que quiserdes por todo o tempo da minha vida!»: foi com esta oração que começou a sua missão. E, à conversão da sua paróquia, dedicou-se o Santo Cura com todas as suas energias, pondo no cume de cada uma das suas ideias a formação cristã do povo a ele confiado. Amados irmãos no sacerdócio, peçamos ao Senhor Jesus a graça de podermos também nós assimilar o método pastoral de S. João Maria Vianney. A primeira coisa que devemos aprender é a sua total identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a coincidir Pessoa e Missão: toda a sua acção salvífica era e é expressão do seu «Eu filial» que, desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de amorosa submissão à sua vontade. Com modesta mas verdadeira analogia, também o sacerdote deve ansiar por esta identificação.



Não se trata, certamente, de esquecer que a eficácia substancial do ministério permanece independentemente da santidade do ministro; mas também não se pode deixar de ter em conta a extraordinária frutificação gerada do encontro entre a santidade objectiva do ministério e a subjectiva do ministro. O Cura d’Ars principiou imediatamente este humilde e paciente trabalho de harmonização entre a sua vida de ministro e a santidade do ministério que lhe estava confiado, decidindo «habitar», mesmo materialmente, na sua igreja paroquial: «Logo que chegou, escolheu a igreja por sua habitação. (…) Entrava na igreja antes da aurora e não saía de lá senão à tardinha depois do Angelus. Quando precisavam dele, deviam procurá-lo lá»: lê-se na primeira biografia.

exagero devoto do pio hagiógrafo não deve fazer-nos esquecer o facto de que o Santo Cura soube também «habitar» activamente em todo o território da sua paróquia: visitava sistematicamente os doentes e as famílias; organizava missões populares e festas dos Santos Patronos; recolhia e administrava dinheiro para as suas obras sócio-caritativas e missionárias; embelezava a sua igreja e dotava-a de alfaias sagradas; ocupava-se das órfãs da «Providence» (um instituto fundado por ele) e das suas educadoras; tinha a peito a instrução das crianças; fundava confrarias e chamava os leigos para colaborar com ele.
O seu exemplo induz-me a evidenciar os espaços de colaboração que é imperioso estender cada vez mais aos fiéis leigos, com os quais os presbíteros formam um único povo sacerdotal e no meio dos quais, em virtude do sacerdócio ministerial, se encontram «para os levar todos à unidade, “amando-se uns aos outros com caridade fraterna, e tendo os outros por mais dignos” (Rm 12, 10)».

Neste contexto, há que recordar o caloroso e encorajador convite feito pelo Concílio Vaticano II aos presbíteros para que «reconheçam e promovam sinceramente a dignidade e participação própria dos leigos na missão da Igreja. Estejam dispostos a ouvir os leigos, tendo fraternalmente em conta os seus desejos, reconhecendo a experiência e competência deles nos diversos campos da atividade humana, para que, juntamente com eles, saibam reconhecer os sinais dos tempos».
O Santo Cura ensinava os seus paroquianos sobretudo com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus Eucaristia. «Para rezar bem – explicava-lhes o Cura –, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela sua presença sagrada. Esta é a melhor oração». E exortava: «Vinde à comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver d’Ele para poderdes viver com Ele».


"É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!". Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a comunhão adquiria um eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia afirmava que «não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. (...) Contemplava a Hóstia amorosamente». Dizia ele: «Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do sacrifício da Missa, porque aquelas são obra de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus».

Estava convencido de que todo o fervor da vida de um padre dependia da Missa: «A causa do relaxamento do sacerdote é porque não presta atenção à Missa! Meu Deus, como é de lamentar um padre que celebra [a Missa] como se fizesse um coisa ordinária!». E, ao celebrar, tinha tomado o costume de oferecer sempre também o sacrifício da sua própria vida: «Como faz bem um padre oferecer-se em sacrifício a Deus todas as manhãs!».


Esta sintonia pessoal com o Sacrifício da Cruz levava-o – por um único movimento interior – do altar ao confessionário. Os sacerdotes não deveriam jamais resignar-se a ver os seus confessionários desertos, nem limitar-se a constatar o menosprezo dos fiéis por este sacramento. Na França, no tempo do Santo Cura d’Ars, a confissão não era mais fácil nem mais frequente do que nos nossos dias, pois a tormenta revolucionária tinha longamente sufocado a prática religiosa. Mas ele procurou de todos os modos, com a pregação e o conselho persuasivo, fazer os seus paroquianos redescobrirem o significado e a beleza da Penitência sacramental, apresentando-a como uma exigência íntima da Presença eucarística. Pôde assim dar início a um círculo virtuoso. Com as longas permanências na igreja junto do sacrário, fez com que os fiéis começassem a imitá-lo, indo até lá visitar Jesus, e ao mesmo tempo estivessem seguros de que lá encontrariam o seu pároco, disponível para os ouvir e perdoar. Em seguida, a multidão crescente dos penitentes, provenientes de toda a França, haveria de o reter no confessionário até 16 horas por dia. Dizia-se então que Ars se tinha tornado «o grande hospital das almas».

«A graça que ele obtinha [para a conversão dos pecadores] era tão forte que aquela ia procurá-los sem lhes deixar um momento de trégua!»: diz o primeiro biógrafo. E assim o pensava o Santo Cura d’Ars, quando afirmava: «Não é o pecador que regressa a Deus para Lhe pedir perdão, mas é o próprio Deus que corre atrás do pecador e o faz voltar para Ele».

«Este bom Salvador é tão cheio de amor que nos procura por todo o lado».
Todos nós, sacerdotes, deveríamos sentir que nos tocam pessoalmente estas palavras que ele colocava na boca de Cristo: «Encarregarei os meus ministros de anunciar aos pecadores que estou sempre pronto a recebê-los, que a minha misericórdia é infinita».

Do Santo Cura d’Ars, nós, sacerdotes, podemos aprender não só uma inexaurível confiança no sacramento da Penitência que nos instigue a colocá-lo no centro das nossas preocupações pastorais, mas também o método do «diálogo de salvação» que nele se deve realizar. O Cura d’Ars tinha maneiras diversas de comportar-se segundo os vários penitentes. Quem vinha ao seu confessionário atraído por uma íntima e humilde necessidade do perdão de Deus, encontrava nele o encorajamento para mergulhar na «torrente da misericórdia divina» que, no seu ímpeto, tudo arrasta e depura. E se aparecia alguém angustiado com o pensamento da sua debilidade e inconstância, temeroso por futuras quedas, o Cura d’Ars revelava-lhe o segredo de Deus com um discurso de comovente beleza: «O bom Deus sabe tudo. Ainda antes de vos confessardes, já sabe que voltareis a pecar e todavia perdoa-vos. Como é grande o amor do nosso Deus, quevai até ao ponto de esquecer voluntariamente o futuro, só para poder perdoar-nos!».


Diversamente, a quem se acusava de forma tíbia e quase indiferente, expunha, através das suas próprias lágrimas, a séria e dolorosa evidência de quão «abominável» fosse aquele comportamento. «Choro, porque vós não chorais»: exclamava ele. «Se ao menos o Senhor não fosse assim tão bom! Mas é assim bom! Só um bárbaro poderia comportar-se assim diante de um Pai tão bom!». Fazia brotar o arrependimento no coração dos tíbios, forçando-os a verem com os próprios olhos o sofrimento de Deus, causado pelos pecados, quase «encarnado» no rosto do padre que os atendia de confissão. Entretanto a quem se apresentava já desejoso e capaz de uma vida espiritual mais profunda, abria-lhe de par em par as profundidades do amor, explicando a inexprimível beleza de poder viver unidos a Deus e na sua presença: «Tudo sob o olhar de Deus, tudo com Deus, tudo para agradar a Deus. (...) Como é belo!»

E ensinava-lhes a rezar assim: «Meu Deus, dai-me a graça de Vos amar tanto quanto é possível que eu Vos ame!».
No seu tempo, o Cura d’Ars soube transformar o coração e a vida de muitas pessoas, porque conseguiu fazer-lhes sentir o amor misericordioso do Senhor. Também hoje é urgente igual anúncio e testemunho da verdade do Amor: Deus caritas est (1 Jo 4, 8). Com a Palavra e os Sacramentos do seu Jesus, João Maria Vianney sabia instruir o seu povo, ainda que frequentemente suspirava convencido da sua pessoal inaptidão a ponto de ter desejado diversas vezes subtrair-se às responsabilidades do ministério paroquial de que se sentia indigno. Mas, com exemplar obediência, ficou sempre no seu lugar, porque o consumia a paixão apostólica pela salvação das almas. Procurava aderir totalmente à própria vocação e missão por meio de uma severa ascese: «Para nós, párocos, a grande desdita – deplorava o Santo – é entorpecer-se a alma», entendendo, com isso, o perigo de o pastor se habituar ao estado de pecado ou de indiferença em que vivem muitas das suas ovelhas. Com vigílias e jejuns, punha freio ao corpo, para evitar que opusesse resistência à sua alma sacerdotal. E não se esquivava a mortificar-se a si mesmo para bem das almas que lhe estavam confiadas e para contribuir para a expiação dos muitos pecados ouvidos em confissão. Explicava a um colega sacerdote: «Dir-vos-ei qual é a minha receita: dou aos pecadores uma penitência pequena e o resto faço-o eu no lugar deles».


Independentemente das penitências concretas a que se sujeitava o Cura d’Ars, continua válido para todos o núcleo do seu ensinamento: as almas custam o sangue de Cristo e o sacerdote não pode dedicar-se à sua salvação se se recusa a contribuir com a sua parte para o «alto preço» da redenção.

No mundo atual, não menos do que nos tempos difíceis do Cura d’Ars, é preciso que os presbíteros, na sua vida e acção, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico. Observou, justamente, Paulo VI que «o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas». Para que não se forme um vazio existencial em nós e fique comprometida a eficácia do nosso ministério, é preciso não cessar de nos interrogarmos: «Somos verdadeiramente permeados pela Palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de que o sejam o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento?». Assim como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf. Mc 3, 14) e só depois é que os enviou a pregar, assim também nos nossos dias os sacerdotes são chamados a assimilar aquele «novo estilo de vida» que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos.

Foi precisamente a adesão sem reservas a este «novo estilo de vida» que caracterizou o trabalho ministerial do Cura d’Ars. O Papa João XXIII, na carta encíclica Sacerdotii nostri primordia – publicada em 1959, centenário da morte de S. João Maria Vianney –, apresentava a sua fisionomia ascética referindo-se de modo especial ao tema dos «três conselhos evangélicos», considerados necessários também para os presbíteros: «Embora, para alcançar esta santidade de vida, não seja imposta ao sacerdote como própria do estado clerical a prática dos conselhos evangélicos, entretanto esta representa para ele, como para todos os discípulos do Senhor, o caminho regular da santificação cristã».

O Cura d’Ars soube viver os «conselhos evangélicos» segundo modalidades apropriadas à sua condição de presbítero. Com efeito, a sua pobreza não foi a mesma de um religioso ou de um monge, mas a requerida a um padre: embora manejasse com muito dinheiro (dado que os peregrinos mais abonados não deixavam de se interessar pelas suas obras sócio-caritativas), sabia que tudo era dado para a sua igreja, os seus pobres, os seus órfãos, as meninas da sua «Providence», as suas famílias mais indigentes. Por isso, ele «era rico para dar aos outros e era muito pobre para si mesmo».

Explicava: «O meu segredo é simples: dar tudo e não guardar nada».
Quando se encontrava com as mãos vazias, dizia contente aos pobres que se lhe dirigiam: «Hoje sou pobre como vós, sou um dos vossos». Deste modo pôde, ao fim da vida, afirmar com absoluta serenidade: «Não tenho mais nada. Agora o bom Deus pode chamar-me quando quiser!». Também a sua castidade era aquela que se requeria a um padre para o seu ministério. Pode-se dizer que era a castidade conveniente a quem deve habitualmente tocar a Eucaristia e que habitualmente a fixa com todo o entusiasmo do coração e com o mesmo entusiasmo a dá aos seus fiéis. Dele se dizia que «a castidade brilhava no seu olhar», e os fiéis apercebiam-se disso quando ele se voltava para o sacrário fixando-o com os olhos de um enamorado.

Também a obediência de S. João Maria Vianney foi toda encarnada na dolorosa adesão às exigências diárias do seu ministério. É sabido como o atormentava o pensamento da sua própria inaptidão para o ministério paroquial e o desejo que tinha de fugir «para chorar a sua pobre vida, na solidão». Somente a obediência e a paixão pelas almas conseguiam convencê-lo a continuar no seu lugar. A si próprio e aos seus fiéis explicava: «Não há duas maneiras boas de servir a Deus. Há apenas uma: servi-Lo como Ele quer ser servido».

A regra de ouro para levar uma vida obediente parecia-lhe ser esta: «Fazer só aquilo que pode ser oferecido ao bom Deus».
No contexto da espiritualidade alimentada pela prática dos conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito está a suscitar na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades. «O Espírito é multiforme nos seus dons. (…) Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e segundo formas precedentemente inimagináveis (…); mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo».

A propósito disto, vale a indicação do decreto Presbyterorum ordinis: «Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos».[46]Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos mas também para os próprios ministros. Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas pode brotar «um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da esperança e da caridade em todos os recantos do mundo». Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica Pastores dabo vobis do Papa João Paulo II, que o ministério ordenado tem uma radical «forma comunitária» e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu Bispo. É preciso que esta comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo Bispo, baseada no sacramento da Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas formas concretas de uma fraternidade sacerdotal efectiva e afectiva. Só deste modo é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho.

O Ano Paulino, que está a chegar ao fim, encaminha o nosso pensamento também para o Apóstolo das nações, em quem refulge aos nossos olhos um modelo esplêndido de sacerdote, totalmente «doado» ao seu ministério. «O amor de Cristo nos impele – escrevia ele –, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). E acrescenta: Ele «morreu por todos, para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles» (2 Cor 5, 15). Que programa melhor do que este poderia ser proposto a um sacerdote empenhado a avançar pela estrada da perfeição cristã?

Amados sacerdotes, a celebração dos cento e cinquenta anos da morte de S. João Maria Vianney (1859) segue-se imediatamente às celebrações há pouco encerradas dos cento e cinquenta anos das aparições de Lourdes (1858). Já em 1959, o Beato Papa João XXIIIanotara: «Pouco antes que o Cura d’Ars concluísse a sua longa carreira cheia de méritos, a Virgem Imaculada aparecera, noutra região da França, a uma menina humilde e pura para lhe transmitir uma mensagem de oração e penitência, cuja imensa ressonância espiritual há um século que é bem conhecida. Na realidade, a vida do santo sacerdote, cuja comemoração celebramos, fora de antemão uma viva ilustração das grandes verdades sobrenaturais ensinadas à vidente de Massabielle. Ele próprio nutria pela Imaculada Conceição da Santíssima Virgem uma vivíssima devoção, ele que, em 1836, tinha consagrado a sua paróquia a Maria concebida sem pecado e havia de acolher com tanta fé e alegria a definição dogmática de 1854».

O Santo Cura d’Ars sempre recordava aos seus fiéis que «Jesus Cristo, depois de nos ter dado tudo aquilo que nos podia dar, quis ainda fazer-nos herdeiros de quanto Ele tem de mais precioso, ou seja, da sua Santa Mãe».

À Virgem Santíssima entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar no ânimo de cada presbítero um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja que inspiraram o pensamento e a acção do Santo Cura d’Ars. Com a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus crucificado, João Maria Vianney alimentou a sua quotidiana doação sem reservas a Deus e à Igreja. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos que é tão necessário hoje, como o foi sempre. Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre actual a palavra de Cristo aos seus apóstolos, no Cenáculo: «No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo» (Jo 16, 33). A fé no divino Mestre dá-nos a força para olhar confiadamente o futuro. Amados sacerdotes, Cristo conta convosco. A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele e sereis também vós, no mundo actual, mensageiros de esperança, de reconciliação, de paz.


Com a minha bênção.
Vaticano, 16 de Junho de 2009.

BENEDICTUS PP. XVI

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14 junho 2009

Mensagem para o Ano Sacerdotal

O ANO SACERDOTAL

Caros Sacerdotes,

O Ano Sacerdotal, anunciado por nosso amado Papa Bento XVI, para celebrar o 150º aniversário da morte de S. João Maria Vianney, o Santo Cura D’Ars, está às portas. O Santo Padre o abrirá a 19 de junho p.f., festa do Sagrado Coração de Jesus e Dia Mundial de oração pela santificação dos sacerdotes. O anúncio deste ano especial teve uma repercussão mundial positiva, especialmente entre os próprios sacerdotes. Todos queremos empenhar-nos com determinação, profundidade e fervor, a fim de que seja um ano amplamente celebrado em todo o mundo, nas dioceses, nas paróquias, em cada comunidade local, com envolvimento caloroso do nosso povo católico, que sem dúvida ama seus padres e os quer ver felizes, santos e alegres no trabalho apostólico quotidiano.

Deverá ser um ano positivo e propositivo, em que a Igreja quer dizer antes de tudo aos sacerdotes, mas também a todos os cristãos, à sociedade mundial, através dos meios de comunicação global, que ela se orgulha de seus sacerdotes, os ama, os venera, os admira e reconhece com gratidão seu trabalho pastoral e seu testemunho de vida. Realmente, os sacerdotes são importantes não só pelo que fazem, mas também pelo que são. Ao mesmo tempo, é verdade que alguns deles apareceram envolvidos em problemas graves e situações delituosas. Obviamente, é preciso continuar a investigá-los, julgá-los devidamente e puni-los. Estes casos, contudo, dizem respeito somente a uma porcentagem muito pequena do clero. Na sua imensa maioria, os sacerdotes são pessoas muito dignas, dedicadas ao ministério, homens de oração e de caridade pastoral, que investem toda sua vida na realização de sua vocação e missão, muitas vezes com grandes sacrifícios pessoais, mas sempre com amor autêntico a Jesus Cristo, à Igreja e ao povo, solidários com os pobres e os sofridos. Por isso, a Igreja está orgulhosa de seus sacerdotes em todo o mundo.

Este ano seja também ocasião para um período de intenso aprofundamento da identidade sacerdotal, da teologia do sacerdócio católico e do sentido extraordinário da vocação e da missão dos sacerdotes na Igreja e na sociedade. Isso exigirá congressos de estudo, jornadas de reflexão, exercícios espirituais específicos, conferências e semanas teológicas em nossa faculdades eclesiásticas, pesquisas científicas e respectivas publicações.

O Santo Padre, em seu discurso de anúncio, durante a Assembléia Plenária da Congregação para o Clero, a 16 de março p.p., disse que com este ano especial pretende-se “favorecer esta tensão dos sacerdotes para a perfeição espiritual da qual sobretudo depende a eficácia do seu ministério”. Por esta razão, deve ser, de modo muito especial, um ano de oração dos sacerdotes, com eles e por eles, um ano de renovação da espiritualidade do presbitério e de cada presbítero. A adoração eucarística pela santificação dos sacerdotes e a maternidade espiritual de monjas, de religiosas consagradas e de leigas referente a sacerdotes , como já proposto, tempos atrás, pela Congregação para o Clero, poderiam ser desenvolvidas com frutos reais de santificação.

Seja um ano em que se examinem de novo as condições concretas e a sustentação material em que vivem nossos sacerdotes, às vezes submetidos a situações de dura pobreza.

Seja, ao mesmo tempo, um ano de celebrações religiosas e públicas, que levem o povo, as comunidades católicas locais, a rezar, a meditar, a festejar e a prestar uma justa homenagem a seus sacerdotes. A festa na comunidade eclesial constitui uma expressão muito cordial, que exprime e nutre a alegria cristã, uma alegria que brota da certeza de que Deus nos ama e festeja conosco. Será uma oportunidade para desenvolver a comunhão e a amizade dos sacerdotes com a comunidade que lhes foi confiada.

Muitos outros aspectos e iniciativas poderiam ser nomeados para enriquecer o Ano Sacerdotal. Aqui deverá entrar a justa creatividade das Igrejas locais. Por esta razão, convem que cada Conferência Episcopal, cada diocese, cada paróquia e comunidade local estabeleçam, quanto antes, um verdadeiro e próprio programa para este ano especial. Obviamente, será muito importante começar o ano com um evento significativo. No próprio dia da abertura do Ano Sacerdotal em Roma com o Santo Padre, 19 de junho, as Igrejas locais são convidadas a participar, de algum modo, quiçá com um ato litúrgico específico e festivo. Os que puderem vir a Roma para a abertura, venham para manifestar assim a própria participação nesta feliz iniciativa do Papa. Deus, sem dúvida, abençoará este empenho com grande amor. E a Santíssima Virgem Maria, Rainha do Clero, intercederá por todos vós, caros sacerdotes!

Cardeal Dom Cláudio Hummes
Arcebispo Emérito de São Paulo
Prefeito da Congregação para o Clero

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12 abril 2009

Mensagem do Papa para a Páscoa - 2009

Amados irmãos e irmãs de Roma e do mundo inteiro!

A todos vós formulo cordiais votos de Páscoa com as palavras de Santo Agostinho: «Resurrectio Domini, spes nostra – a ressurreição do Senhor é a nossa esperança» (Agostinho, Sermão 261, 1). Com esta afirmação, o grande Bispo explicava aos seus fiéis que Jesus ressuscitou para que nós, apesar de destinados à morte, não desesperássemos, pensando que a vida acaba totalmente com a morte; Cristo ressuscitou para nos dar a esperança (cf. ibid.).

Com efeito, uma das questões que mais angustia a existência do homem é precisamente esta: o que há depois da morte? A este enigma, a solenidade de hoje permite-nos responder que a morte não tem a última palavra, porque no fim quem triunfa é a Vida. E esta nossa certeza não se funda sobre simples raciocínios humanos, mas sobre um dado histórico de fé: Jesus Cristo, crucificado e sepultado, ressuscitou com o seu corpo glorioso. Jesus ressuscitou para que também nós, acreditando n’Ele, possamos ter a vida eterna. Este anúncio situa-se no coração da mensagem evangélica. Declara-o com vigor São Paulo: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé». E acrescenta: «Se tão somente nesta vida esperamos em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens» (1 Cor 15, 14.19). Desde a alvorada de Páscoa, uma nova primavera de esperança invade o mundo; desde aquele dia, a nossa ressurreição já começou, porque a Páscoa não indica simplesmente um momento da história, mas o início duma nova condição: Jesus ressuscitou, não para que a sua memória permaneça viva no coração dos seus discípulos, mas para que Ele mesmo viva em nós, e, n’Ele, possamos já saborear a alegria da vida eterna.
Portanto a ressurreição não é uma teoria, mas uma realidade histórica revelada pelo Homem Jesus Cristo por meio da sua «páscoa», da sua «passagem», que abriu um «caminho novo» entre a terra e o Céu (cf. Heb 10, 20). Não é um mito nem um sonho, não é uma visão nem uma utopia, não é uma fábula, mas um acontecimento único e irrepetível: Jesus de Nazaré, filho de Maria, que ao pôr do sol de Sexta-feira foi descido da cruz e sepultado, deixou vitorioso o túmulo. De facto, ao alvorecer do primeiro dia depois do Sábado, Pedro e João encontraram o túmulo vazio. Madalena e as outras mulheres encontraram Jesus ressuscitado; reconheceram-No também os dois discípulos de Emaús ao partir o pão; o Ressuscitado apareceu aos Apóstolos à noite no Cenáculo e depois a muitos outros discípulos na Galileia.
O anúncio da ressurreição do Senhor ilumina as zonas escuras do mundo em que vivemos. Refiro-me de modo particular ao materialismo e ao niilismo, àquela visão do mundo que não sabe transcender o que é experimentalmente constatável e refugia-se desconsolada num sentimento de que o nada seria a meta definitiva da existência humana. É um facto que, se Cristo não tivesse ressuscitado, o «vazio» teria levado a melhor. Se abstraímos de Cristo e da sua ressurreição, não há escapatória para o homem, e toda a sua esperança permanece uma ilusão. Mas, precisamente hoje, prorrompe com vigor o anúncio da ressurreição do Senhor, que dá resposta à pergunta frequente dos cépticos, referida nomeadamente pelo livro do Coeleth: «Há porventura qualquer coisa da qual se possa dizer: / Eis, aqui está uma coisa nova?» (Co 1, 10). Sim – respondemos –, na manhã de Páscoa, tudo se renovou. «Mors et vita / duello conflixere mirando: dux vitae mortuus / regnat vivus – Morte e vida defrontaram-se / num prodigioso combate: / O Senhor da vida estava morto; / mas agora, vivo, triunfa». Esta é a novidade! Uma novidade que muda a vida de quem a acolhe, como sucedeu com os santos. Assim aconteceu, por exemplo, com São Paulo.
No contexto do Ano Paulino, várias vezes tivemos ocasião de meditar sobre a experiência do grande Apóstolo. Saulo de Tarso, o renhido perseguidor dos cristãos, a caminho de Damasco encontrou Cristo ressuscitado e foi por Ele «conquistado». O resto já sabemos. Aconteceu em Paulo aquilo que ele há-de escrever mais tarde aos cristãos de Corinto: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. O que era antigo passou: tudo foi renovado!» (2 Cor 5, 17). Olhemos para este grande evangelizador que, com o audaz entusiasmo da sua acção apostólica, levou o Evangelho a muitos povos do mundo de então. Que a sua doutrina e o seu exemplo nos estimulem a procurar o Senhor Jesus; nos animem a confiar n’Ele, porque o sentido do nada, que tende a intoxicar a humanidade, já foi vencido pela luz e a esperança que dimanam da ressurreição. Já são verdadeiras e reais as palavras do Salmo: «Nem as trevas, para Vós, têm obscuridade / e a noite brilha como o dia» (139/138, 12). Já não é o nada que envolve tudo, mas a presença amorosa de Deus. Até o próprio reino da morte foi libertado, porque também aos «infernos» chegou o Verbo da vida, impelido pelo sopro do Espírito (Sal 139/138, 8).
Se é verdade que a morte já não tem poder sobre o homem e sobre o mundo, todavia restam ainda muitos, demasiados sinais do seu antigo domínio. Se, por meio da Páscoa, Cristo já extirpou a raiz do mal, todavia precisa de homens e mulheres que, em todo o tempo e lugar, O ajudem a consolidar a sua vitória com as mesmas armas d’Ele: as armas da justiça e da verdade, da misericórdia, do perdão e do amor. Tal foi a mensagem que, por ocasião da recente viagem apostólica aos Camarões e a Angola, quis levar a todo o Continente Africano, que me acolheu com grande entusiasmo e disponibilidade de escuta. De facto, a África sofre desmedidamente com os cruéis e infindáveis conflitos – frequentemente esquecidos – que dilaceram e ensanguentam várias das suas Nações e com o número crescente dos seus filhos e filhas que acabam vítimas da fome, da pobreza, da doença. A mesma mensagem repetirei com vigor na Terra Santa, onde terei a alegria de me deslocar daqui a algumas semanas. A reconciliação difícil mas indispensável, que é premissa para um futuro de segurança comum e de pacífica convivência, não poderá tornar-se realidade senão graças aos esforços incessantes, perseverantes e sinceros em prol da composição do conflito israelita-palestiniano. Da Terra Santa, o olhar estende-se depois para os países limítrofes, o Médio Oriente, o mundo inteiro. Num tempo de global escassez de alimento, de desordem financeira, de antigas e novas pobrezas, de preocupantes alterações climáticas, de violências e miséria que constringem muitos a deixar a própria terra à procura duma sobrevivência menos incerta, de terrorismo sempre ameaçador, de temores crescentes perante a incerteza do amanhã, é urgente descobrir perspectivas capazes de devolverem a esperança. Ninguém deserte nesta pacífica batalha iniciada com a Páscoa de Cristo, o Qual – repito-o – procura homens e mulheres que O ajudem a consolidar a sua vitória com as suas próprias armas, ou seja, as armas da justiça e da verdade, da misericórdia, do perdão e do amor.
Resurrectio Domini, spes nostra – a ressurreição de Cristo é a nossa esperança! É isto que a Igreja proclama hoje com alegria: anuncia a esperança, que Deus tornou inabalável e invencível ao ressuscitar Jesus Cristo dos mortos; comunica a esperança, que ela traz no coração e quer partilhar com todos, em todo o lugar, especialmente onde os cristãos sofrem perseguição por causa da sua fé e do seu compromisso em favor da justiça e da paz; invoca a esperança capaz de suscitar a coragem do bem, mesmo e sobretudo quando custa. Hoje a Igreja canta «o dia que o Senhor fez» e convida à alegria. Hoje a Igreja suplica, invoca Maria, Estrela da Esperança, para que guie a humanidade para o porto seguro da salvação que é o coração de Cristo, a Vítima pascal, o Cordeiro que «redimiu o mundo», o Inocente que «nos reconciliou a nós, pecadores, com o Pai». A Ele, Rei vitorioso, a Ele crucificado e ressuscitado, gritamos com alegria o nosso Aleluia!

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24 fevereiro 2009

Mensagem do Papa para a Quaresma 2009

Queridos irmãos e irmãs

No início da Quaresma, que constitui um caminho de treino espiritual mais intenso, a Liturgia propõe-nos três práticas penitenciais muito queridas à tradição bíblica e cristã – a oração, a esmola, o jejum – a fim de nos predispormos para celebrar melhor a Páscoa e deste modo fazer experiência do poder de Deus que, como ouviremos na Vigília pascal, «derrota o mal, lava as culpas, restitui a inocência aos pecadores, a alegria aos aflitos. Dissipa o ódio, domina a insensibilidade dos poderosos, promove a concórdia e a paz» (Hino pascal). Na habitual Mensagem quaresmal, gostaria de refletir este ano em particular sobre o valor e o sentido do jejum. De fato a Quaresma traz à mente os quarenta dias de jejum vividos pelo Senhor no deserto antes de empreender a sua missão pública. Lemos no Evangelho: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demônio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome» (Mt 4, 1-2). Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei (cf. Êx 34, 28), como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Oreb (cf. 1 Rs 19, 8), assim Jesus rezando e jejuando se preparou para a sua missão, cujo início foi um duro confronto com o tentador.

Podemos perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que a ele induz. Por isto, na história da salvação é frequente o convite a jejuar. Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura o Senhor comanda que o homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn 2, 16-17). Comentando a ordem divina, São Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». Portanto, ele conclui: «O "não comas" e, portanto, a lei do jejum e da abstinência» (cf. Sermo de jejunio: PG 31, 163, 98). Dado que todos estamos entorpecidos pelo pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar «para nos humilhar – diz – diante do nosso Deus» (8, 21). O Onipotente ouviu a sua prece e garantiu os seus favores e a sua proteção. O mesmo fizeram os habitantes de Nínive que, sensíveis ao apelo de Jonas ao arrependimento, proclamaram, como testemunho da sua sinceridade, um jejum dizendo: «Quem sabe se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não pereçamos?» (3, 9). Também então Deus viu as suas obras e os poupou.

No Novo Testamento, Jesus ressalta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete também noutras partes o Mestre divino, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o qual «vê no oculto, recompensar-te-á» (Mt 6, 18). Ele próprio dá o exemplo respondendo a satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4, 4). O verdadeiro jejum finaliza-se, portanto, a comer o «verdadeiro alimento», que é fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4, 34). Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal», com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e misericórdia.

Encontramos a prática do jejum muito presente na primeira comunidade cristã (cf. Act 13, 3; 14, 22; 27, 21; 2 Cor 6, 5). Também os Padres da Igreja falam da força do jejum, capaz de impedir o pecado, de reprimir os desejos do «velho Adão», e de abrir no coração do crente o caminho para Deus. O jejum é também uma prática frequente e recomendada pelos santos de todas as épocas. Escreve São Pedro Crisólogo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum, portanto quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu benefício o coração de Deus não feche o seu a quem o suplica» (Sermo 43; PL 52, 320.332).

Nos nossos dias, a prática do jejum parece ter perdido um pouco do seu valor espiritual e ter adquirido antes, numa cultura marcada pela busca da satisfação material, o valor de uma medida terapêutica para a cura do próprio corpo. Jejuar sem dúvida é bom para o bem-estar, mas para os crentes é em primeiro lugar uma «terapia» para curar tudo o que os impede de se conformarem com a vontade de Deus. Na Constituição apostólica Paenitemini de 1966, o Servo de Deus Paulo VI reconhecia a necessidade de colocar o jejum no contexto da chamada de cada cristão a «não viver mais para si mesmo, mas para aquele que o amou e se entregou a si por ele, e... também a viver pelos irmãos» (Cf. Cap.. I). A Quaresma poderia ser uma ocasião oportuna para retomar as normas contidas na citada Constituição apostólica, valorizando o significado autêntico e perene desta antiga prática penitencial, que pode ajudar-nos a mortificar o nosso egoísmo e a abrir o coração ao amor de Deus e do próximo, primeiro e máximo mandamento da nova Lei e compêndio de todo o Evangelho (cf. Mt 22, 34-40).

A prática fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à pessoa, corpo e alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia «nó complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do jejum, escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me perdoe; castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para aprazer aos seus olhos, para alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3, 3: L 40, 708). Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus.

Ao mesmo tempo, o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos irmãos nossos. Na sua Primeira Carta São João admoesta: «Aquele que tiver bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como estará nele o amor de Deus?» (3, 17). Jejuar voluntariamente ajuda-nos a cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre (cf. Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para ajudar os outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos é indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção para com os irmãos, encorajo as paróquias e todas as outras comunidades a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando de igual modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde o início o estilo da comunidade cristã, na qual eram feitas coletas especiais (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres quanto, graças ao jejum, tinham poupado (cf. Didascalia Ap., V, 20, 18). Também hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo durante o tempo litúrgico quaresmal...

De quanto disse sobressai com grande clareza que o jejum representa uma prática ascética importante, uma arma espiritual para lutar contra qualquer eventual apego desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer dos alimentos e de outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os apetites da natureza fragilizada pela culpa da origem, cujos efeitos negativos atingem toda a personalidade humana. Exorta oportunamente um antigo hino litúrgico quaresmal: «Utamur ergo parcius, / verbis, cibis et potibus, / somno, iocis et arcitius / perstemus in custodia – Usemos de modo mais sóbrio palavras, alimentos, bebidas, sono e jogos, e permaneçamos mais atentamente vigilantes».

Queridos irmãos e irmãos, considerando bem, o jejum tem como sua finalidade última ajudar cada um de nós, como escrevia o Servo de Deus Papa João Paulo II, a fazer dom total de si a Deus (cf. Enc. Veritatis splendor, 21). A Quaresma seja portanto valorizada em cada família e em cada comunidade cristã para afastar tudo o que distrai o espírito e para intensificar o que alimenta a alma abrindo-a ao amor de Deus e do próximo. Penso em particular num maior compromisso na oração, na lectio divina, no recurso ao Sacramento da Reconciliação e na participação ativa na Eucaristia, sobretudo na Santa Missa dominical. Com esta disposição interior entremos no clima penitencial da Quaresma. Acompanhe-nos a Bem-Aventurada Virgem Maria, Causa nostrae laetitiae, e ampare-nos no esforço de libertar o nosso coração da escravidão do pecado para o tornar cada vez mais «tabernáculo vivo de Deus». Com estes votos, ao garantir a minha oração para que cada crente e comunidade eclesial percorra um proveitoso itinerário quaresmal, concedo de coração a todos a Bênção Apostólica.

Vaticano, 11 de dezembro de 2008.
Papa Bento XVI

01 janeiro 2009

Mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz 2009

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO
DIA MUNDIAL DA PAZ
1 DE JANEIRO DE 2009

COMBATER A POBREZA, CONSTRUIR A PAZ

1. Desejo, também no início deste novo ano, fazer chegar os meus votos de paz a todos e, com esta minha Mensagem, convidá-los a reflectir sobre o tema: Combater a pobreza, construir a paz. Já o meu venerado antecessor João Paulo II, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, sublinhara as repercussões negativas que acaba por ter sobre a paz a situação de pobreza em que versam populações inteiras. De facto, a pobreza encontra-se frequentemente entre os factores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos, por sua vez, alimentam trágicas situações de pobreza. « Vai-se afirmando (...), com uma gravidade sempre maior – escrevia João Paulo II –, outra séria ameaça à paz: muitas pessoas, mais ainda, populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza. A disparidade entre ricos e pobres tornou-se mais evidente, mesmo nas nações economicamente mais desenvolvidas. Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade, visto que as condições em que se encontra um grande número de pessoas são tais que ofendem a sua dignidade natural e, consequentemente, comprometem o autêntico e harmónico progresso da comunidade mundial ».(1)

2. Neste contexto, combater a pobreza implica uma análise atenta do fenómeno complexo que é a globalização. Tal análise é já importante do ponto de vista metodológico, porque convida a pôr em prática o fruto das pesquisas realizadas pelos economistas e sociólogos sobre tantos aspectos da pobreza. Mas a evocação da globalização deveria revestir também um significado espiritual e moral, solicitando a olhar os pobres bem cientes da perspectiva que todos somos participantes de um único projecto divino: chamados a constituir uma única família, na qual todos – indivíduos, povos e nações – regulem o seu comportamento segundo os princípios de fraternidade e responsabilidade.
Em tal perspectiva, é preciso ter uma visão ampla e articulada da pobreza. Se esta fosse apenas material, para iluminar as suas principais características, seriam suficientes as ciências sociais que nos ajudam a medir os fenómenos baseados sobretudo em dados de tipo quantitativo. Sabemos porém que existem pobrezas imateriais, isto é, que não são consequência directa e automática de carências materiais. Por exemplo, nas sociedades ricas e avançadas, existem fenómenos de marginalização, pobreza relacional, moral e espiritual: trata-se de pessoas desorientadas interiormente, que, apesar do bem-estar económico, vivem diversas formas de transtorno. Penso, por um lado, no chamado « subdesenvolvimento moral » (2) e, por outro, nas consequências negativas do « superdesenvolvimento ».(3) Não esqueço também que muitas vezes, nas sociedades chamadas « pobres », o crescimento económico é entravado porimpedimentos culturais, que não permitem uma conveniente utilização dos recursos. Seja como for, não restam dúvidas de que toda a forma de pobreza imposta tem, na sua raiz, a falta de respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Quando o homem não é visto na integridade da sua vocação e não se respeitam as exigências duma verdadeira « ecologia humana »,(4) desencadeiam-se também as dinâmicas perversas da pobreza, como é evidente em alguns âmbitos sobre os quais passo a deter brevemente a minha atenção.
Pobreza e implicações morais

3. A pobreza aparece muitas vezes associada, como se fosse sua causa, com o desenvolvimento demográfico. Em consequência disso, realizam-se campanhas de redução da natalidade, promovidas a nível internacional, até com métodos que não respeitam a dignidade da mulher nem o direito dos esposos a decidirem responsavelmente o número dos filhos (5) e que muitas vezes – facto ainda mais grave – não respeitam sequer o direito à vida. O extermínio de milhões de nascituros, em nome da luta à pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres dentre os seres humanos. Contra tal presunção, fala o dado seguinte: enquanto, em 1981, cerca de 40% da população mundial vivia abaixo da linha de pobreza absoluta, hoje tal percentagem aparece substancialmente reduzida a metade, tendo saído da pobreza populações caracterizadas precisamente por um incremento demográfico notável. O dado agora assinalado põe em evidência que existiriam os recursos para se resolver o problema da pobreza, mesmo no caso de um crescimento da população. E não se há-de esquecer que, desde o fim da segunda guerra mundial até hoje, a população da terra cresceu quatro mil milhões e tal fenómeno diz respeito, em larga medida, a países que surgiram recentemente na cena internacional como novas potências económicas e conheceram um rápido desenvolvimento graças precisamente ao elevado número dos seus habitantes. Além disso, dentre as nações que mais se desenvolveram, aquelas que detêm maiores índices de natalidade gozam de melhores potencialidades de progresso. Por outras palavras, a população confirma-se como uma riqueza e não como um factor de pobreza.

4. Outro âmbito de preocupação são as pandemias, como por exemplo a malária, a tuberculose e a SIDA, pois, na medida em que atingem os sectores produtivos da população, influem enormemente no agravamento das condições gerais do país. As tentativas para travar as consequências destas doenças na população nem sempre alcançam resultados significativos. E sucede além disso que os países afectados por algumas dessas pandemias se vêem, ao querer enfrentá-las, sujeitos a chantagem por parte de quem condiciona a ajuda económica à actuação de políticas contrárias à vida. Sobretudo a SIDA, dramática causa de pobreza, é difícil combatê-la se não se enfrentarem as problemáticas morais associadas com a difusão do vírus. É preciso, antes de tudo, fomentar campanhas que eduquem, especialmente os jovens, para uma sexualidade plenamente respeitadora da dignidade da pessoa; iniciativas realizadas nesta linha já deram frutos significativos, fazendo diminuir a difusão da SIDA. Depois há que colocar à disposição também das populações pobres os remédios e os tratamentos necessários; isto supõe uma decidida promoção da pesquisa médica e das inovações terapêuticas e, quando for preciso, uma aplicação flexível das regras internacionais de protecção da propriedade intelectual, de modo que a todos fiquem garantidos os necessários tratamentos sanitários de base.

5. Terceiro âmbito, que é objecto de atenção nos programas de luta contra a pobreza e que mostra a sua intrínseca dimensão moral, é a pobreza das crianças. Quando a pobreza atinge uma família, as crianças são as suas vítimas mais vulneráveis: actualmente quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é constituída por crianças. O facto de olhar a pobreza colocando-se da parte das crianças induz a reter como prioritários os objectivos que mais directamente lhes dizem respeito, como por exemplo os cuidados maternos, o serviço educativo, o acesso às vacinas, aos cuidados médicos e à água potável, a defesa do ambiente e sobretudo o empenho na defesa da família e da estabilidade das relações no seio da mesma. Quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças. Onde não é tutelada a dignidade da mulher e da mãe, a ressentir-se do facto são de novo principalmente os filhos.

6. Quarto âmbito que, do ponto de vista moral, merece particular atenção é a relação existente entre desarmamento e progresso. Gera preocupação o actual nível global de despesa militar. É que, como já tive ocasião de sublinhar, « os ingentes recursos materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos, na realidade, são desviados dos projectos de desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais pobres e necessitados de ajuda. E isto está contra o estipulado na própria Carta das Nações Unidas, que empenha a comunidade internacional, e cada um dos Estados em particular, a ‘‘promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional com o mínimo dispêndio dos recursos humanos e económicos mundiais para os armamentos'' (art. 26) ».(6)
Uma tal conjuntura, longe de facilitar, obstaculiza seriamente a consecução dos grandes objectivos de desenvolvimento da comunidade internacional. Além disso, um excessivo aumento da despesa militar corre o risco de acelerar uma corrida aos armamentos que provoca faixas de subdesenvolvimento e desespero, transformando-se assim, paradoxalmente, em factor de instabilidade, tensão e conflito. Como sensatamente afirmou o meu venerado antecessor Paulo VI, « o desenvolvimento é o novo nome da paz ».(7) Por isso, os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências com uma corajosa autocrítica. Se se chegar a uma melhoria das relações, isso deverá consentir uma redução das despesas para armamentos. Os recursos poupados poderão ser destinados para projectos de desenvolvimento das pessoas e dos povos mais pobres e necessitados: o esforço despendido em tal direcção é um serviço à paz no seio da família humana.

7. Quinto âmbito na referida luta contra a pobreza material diz respeito à crise alimentar actual, que põe em perigo a satisfação das necessidades de base. Tal crise é caracterizada não tanto pela insuficiência de alimento, como sobretudo pela dificuldade de acesso ao mesmo e por fenómenos especulativos e, consequentemente, pela falta de um reajustamento de instituições políticas e económicas que seja capaz de fazer frente às necessidades e às emergências. A má nutrição pode também provocar graves danos psicofísicos nas populações, privando muitas pessoas das energias de que necessitam para sair, sem especiais ajudas, da sua situação de pobreza. E isto contribui para alargar a distância angular das desigualdades, provocando reacções que correm o risco de tornar-se violentas. Todos os dados sobre o andamento da pobreza relativa nos últimos decénios indicam um aumento do fosso entre ricos e pobres. Causas principais de tal fenómeno são, sem dúvida, por um lado a evolução tecnológica, cujos benefícios se concentram na faixa superior da distribuição do rendimento, e por outro a dinâmica dos preços dos produtos industriais, que crescem muito mais rapidamente do que os preços dos produtos agrícolas e das matérias primas na posse dos países mais pobres. Isto faz com que a maior parte da população dos países mais pobres sofra uma dupla marginalização, ou seja, em termos de rendimentos mais baixos e de preços mais altos.


Luta contra a pobreza e solidariedade global
8. Uma das estradas mestras para construir a paz é uma globalização que tenha em vista os interesses da grande família humana.(8) Mas, para guiar a globalização é preciso uma fortesolidariedade global (9) entre países ricos e países pobres, como também no âmbito interno de cada uma das nações, incluindo ricas. É necessário um « código ético comum »,(10) cujas normas não tenham apenas carácter convencional mas estejam radicadas na lei natural inscrita pelo Criador na consciência de todo o ser humano (cf. Rm 2, 14-15). Porventura não sente cada um de nós, no íntimo da consciência, o apelo a dar a própria contribuição para o bem comum e a paz social? A globalização elimina determinadas barreiras, mas isto não significa que não possa construir outras novas; aproxima os povos, mas a proximidade geográfica e temporal não cria, de per si, as condições para uma verdadeira comunhão e uma paz autêntica. A marginalização dos pobres da terra só pode encontrar válidos instrumentos de resgate na globalização, se cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos ligadas com elas. A Igreja, que é « sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »,(11) continuará a dar a sua contribuição para que sejam superadas as injustiças e incompreensões e se chegue a construir um mundo mais pacífico e solidário.

9. No campo do comércio internacional e das transacções financeiras, temos hoje em acção processos que permitem integrar positivamente as economias, contribuindo para o melhoramento das condições gerais; mas há também processos de sentido oposto, que dividem e marginalizam os povos, criando perigosas premissas para guerras e conflitos. Nos decénios posteriores à segunda guerra mundial, o comércio internacional de bens e serviços cresceu de forma extraordinariamente rápida, com um dinamismo sem precedentes na história. Grande parte do comércio mundial interessou os países de antiga industrialização, vindo significativamente juntar-se-lhes muitos países que sobressaíram tornando-se relevantes. Mas há outros países de rendimento baixo que estão ainda gravemente marginalizados dos fluxos comerciais. O seu crescimento ressentiu-se negativamente com a rápida descida verificada, nos últimos decénios, nos preços dos produtos primários, que constituem a quase totalidade das suas exportações. Nestes países, em grande parte africanos, a dependência das exportações de produtos primários continua a constituir um poderoso factor de risco. Quero reiterar aqui um apelo para que todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado mundial, evitando exclusões e marginalizações.

10. Idêntica reflexão pode fazer-se a propósito do mercado financeiro, que toca um dos aspectos primários do fenómeno da globalização, devido ao progresso da electrónica e às políticas de liberalização dos fluxos de dinheiro entre os diversos países. A função objectivamente mais importante do mercado financeiro, que é a de sustentar a longo prazo a possibilidade de investimentos e consequentemente de desenvolvimento, aparece hoje muito frágil: sofre as consequências negativas de um sistema de transacções financeiras – a nível nacional e global – baseadas sobre uma lógica de brevíssimo prazo, que busca o incremento do valor das actividades financeiras e se concentra na gestão técnica das diversas formas de risco. A própria crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo. O nivelamento dos objectivos dos operadores financeiros globais para o brevíssimo prazo reduz a capacidade de o mercado financeiro realizar a sua função de ponte entre o presente e o futuro: apoio à criação de novas oportunidades de produção e de trabalho a longo prazo. Uma actividade financeira confinada no breve e brevíssimo prazo torna-se perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as fases de euforia financeira.(12)

11. Segue-se de tudo isto que a luta contra a pobreza requer uma cooperação nos planos económico e jurídico que permita à comunidade internacional e especialmente aos países pobres individuarem e actuarem soluções coordenadas para enfrentar os referidos problemas através da realização de um quadro jurídico eficaz para a economia. Além disso, requer estímulos para se criarem instituições eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover uma cultura da legalidade. Por outro lado, não se pode negar que, na origem de muitos falimentos na ajuda aos países pobres, estão as políticas vincadamente assistencialistas. Investir na formação das pessoas e desenvolver de forma integrada uma cultura específica da iniciativa parece ser actualmente o verdadeiro projecto a médio e longo prazo. Se as actividades económicas precisam de um contexto favorável para se desenvolver, isto não significa que a atenção se deva desinteressar dos problemas do rendimento. Embora se tenha oportunamente sublinhado que o aumento do rendimento pro capite não pode de forma alguma constituir o fim da acção político-económica, todavia não se deve esquecer que o mesmo representa um instrumento importante para se alcançar o objectivo da luta contra a fome e contra a pobreza absoluta. Deste ponto de vista, seja banida a ilusão de que uma política de pura redistribuição da riqueza existente possa resolver o problema de maneira definitiva. De facto, numa economia moderna, o valor da riqueza depende em medida determinante da capacidade de criar rendimento presente e futuro. Por isso, a criação de valor surge como um elo imprescindível, que se há- de ter em conta se se quer lutar contra a pobreza material de modo eficaz e duradouro.

12. Colocar os pobres em primeiro lugar implica, finalmente, que se reserve espaço adequado para uma correcta lógica económica por parte dos agentes do mercado internacional, umacorrecta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correcta lógica participativacapaz de valorizar a sociedade civil local e internacional. Hoje os próprios organismos internacionais reconhecem o valor e a vantagem das iniciativas económicas da sociedade civil ou das administrações locais para favorecer o resgate e a integração na sociedade daquelas faixas da população que muitas vezes estão abaixo do limiar de pobreza extrema mas, ao mesmo tempo, dificilmente se consegue fazer-lhes chegar as ajudas oficiais. A história do progresso económico do século XX ensina que boas políticas de desenvolvimento são confiadas à responsabilidade dos homens e à criação de positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados. Particularmente a sociedade civil assume um papel crucial em todo o processo de desenvolvimento, já que este é essencialmente um fenómeno cultural e a cultura nasce e se desenvolve nos diversos âmbitos da vida civil.(13)

13. Como observava o meu venerado antecessor João Paulo II, a globalização « apresenta-se com uma acentuada característica de ambivalência »,(14) pelo que há- de ser dirigida com clarividente sabedoria. Faz parte de tal sabedoria ter em conta primariamente as exigências dos pobres da terra, superando o escândalo da desproporção que se verifica entre os problemas da pobreza e as medidas predispostas pelos homens para os enfrentar. A desproporção é de ordem tanto cultural e política como espiritual e moral. De facto, tais medidas detêm-se frequentemente nas causas superficiais e instrumentais da pobreza, sem chegar às que se abrigam no coração humano, como a avidez e a estreiteza de horizontes. Os problemas do desenvolvimento, das ajudas e da cooperação internacional são às vezes enfrentados sem um verdadeiro envolvimento das pessoas, mas apenas como questões técnicas que se reduzem à preparação de estruturas, elaboração de acordos tarifários, atribuição de financiamentos anónimos. Inversamente, a luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades por percursos de autêntico progresso humano.


Conclusão

14. Na Encíclica Centesimus annus, João Paulo II advertia para a necessidade de « abandonar a mentalidade que considera os pobres – pessoas e povos – como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem consumir tudo o que os outros produziram ». « Os pobres – escrevia ele – pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos ».(15) No mundo global de hoje, resulta de forma cada vez mais evidente que só é possível construir a paz, se se assegurar a todos a possibilidade de um razoável crescimento: de facto, as consequências das distorções de sistemas injustos, mais cedo ou mais tarde, fazem-se sentir sobre todos. Deste modo, só a insensatez pode induzir a construir um palácio dourado, tendo porém ao seu redor o deserto e o degrado. Por si só, a globalização não consegue construir a paz; antes, em muitos casos, cria divisões e conflitos. A mesma põe a descoberto sobretudo uma urgência: a de ser orientada para um objectivo de profunda solidariedade que aponte para o bem de cada um e de todos. Neste sentido, a globalização há-de ser vista como uma ocasião propícia para realizar algo de importante na luta contra a pobreza e colocar à disposição da justiça e da paz recursos até agora impensáveis.

15. Desde sempre se interessou pelos pobres a doutrina social da Igreja. Nos tempos da Encíclica Rerum novarum, pobres eram sobretudo os operários da nova sociedade industrial; no magistério social de Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, novas pobrezas foram vindo à luz à medida que o horizonte da questão social se alargava até assumir dimensões mundiais.(16) Este alargamento da questão social à globalidade não deve ser considerado apenas no sentido duma extensão quantitativa mas também dum aprofundamento qualitativo sobre o homem e as necessidades da família humana. Por isso a Igreja, ao mesmo tempo que segue com atenção os fenómenos actuais da globalização e a sua incidência sobre as pobrezas humanas, aponta os novos aspectos da questão social, não só em extensão mas também em profundidade, no que se refere à identidade do homem e à sua relação com Deus. São princípios de doutrina social que tendem a esclarecer os vínculos entre pobreza e globalização e a orientar a acção para a construção da paz. Dentre tais princípios, vale a pena recordar aqui, de modo particular, o « amor preferencial pelos pobres »,(17) à luz do primado da caridade testemunhado por toda a tradição cristã a partir dos primórdios da Igreja (cf. Act 4, 32-37; 1 Cor 16, 1; 2 Cor 8-9; Gal 2, 10).
« Cada um entregue-se à tarefa que lhe incumbe com a maior diligência possível » – escrevia em 1891 Leão XIII, acrescentando: « Quanto à Igreja, a sua acção não faltará em nenhum momento ».(18) Esta consciência acompanha hoje também a acção da Igreja em favor dos pobres, nos quais vê Cristo,(19) sentindo ressoar constantemente em seu coração o mandato do Príncipe da paz aos Apóstolos: « Vos date illis manducare – dai-lhes vós mesmos de comer » (Lc 9, 13). Fiel a este convite do seu Senhor, a Comunidade Cristã não deixará, pois, de assegurar o seu apoio à família humana inteira nos seus impulsos de solidariedade criativa, tendentes não só a partilhar o supérfluo, mas sobretudo a alterar « os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades ».(20) Assim, a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo, no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir em seu socorro. De facto, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma « combater a pobreza é construir a paz ».

Vaticano, 8 de Dezembro de 2008.
Papa Bento XVI